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Nota #9

03 a 07/11

Nossa entrada na Patagônia teve significado especial pra mim. Havia um trecho de aproximadamente 150km que eu estava ansioso para fazer desde o início da viagem. Logo depois de Temuco seguimos para Villarrica. Passaríamos muito perto (no pé) de alguns vulcões, entre eles Lanin e Villarrica, o segundo sendo um dos mais ativos da América do Sul. Porém, nossa saída tardia de Temuco nos faria cruzar toda essa região durante a noite, não que isso fosse fazer muita diferença, pois naquele dia o tempo estava completamente fechado e a chuva logo viria.

O fato de ter a moto presa no teto de La Defensora eu logo superei, mas não o fato de “perder” algo pré-visualizado. Por volta das 20:30h nos aproximamos da fronteira com o Chile. Sabíamos que o Lanin estava bem próximo, mas uma intensa camada de nuvens e neblina encobria completamente qualquer visão. Foi um início de noite sombrio, que rendeu boas fotografias e boas cenas.

Recebemos com surpresa a informação de que a fronteira acabara de fechar. O horário limite para cruzá-la era às 20h. Não posso negar que senti animação, mas agora tínhamos outros problemas: o dinheiro estava acabando e não queríamos gastar com nenhuma hospedagem de conforto desnecessário. A ideia era acampar em qualquer lugar, era noite e chovia. Outro problema era alimentação. Logo começamos a mentalmente catalogar as possíveis combinações que poderiam ser encontradas no porta-malas da Defender: uma garrafa grande de vinho Chileno, água, uma lata grande de peixe, arroz, chocolates, etc, etc. Venceríamos a fome com isso!

Entramos na primeira área de descanso que encontramos após fazer a volta. Era uma grande clareira rodeada por altas araucárias. Danilo logo focou no fogo, tarefa não muito fácil devido à chuva do dia todo, enquanto eu e Tana começamos a montar o acampamento de maneira simples, eficaz e rápida.

Logo estávamos com o fogo aceso, acampamento pronto, jantar no fogo, beberricando um vinho. Alegria plena, que noite! Fomos dormir de barriga cheia e levemente embriagados para só acordamos com o sol entrando através do tecido fino da barraca. Lá fora uma visão aberta e clara do Vulcão Lanin, que estava literalmente ao nosso lado! Tivemos uma manhã de contemplação muito bem aproveitada, tomamos café em um estabelecimento próximo e no fim do dia cruzamos a fronteira em direção à Patagônia Argentina, passando por Junin de Los Andes, para então buscar abrigo em San Martin de Los Andes, onde após descobrirmos que todos os campings estavam fechados, invadimos o único que não continha um cadeado no portão. Buscamos alguém dentro da enorme propriedade - sem sucesso - escolhemos um lugar e montamos acampamento mesmo assim. Nessa noite conhecemos o que se tornaria a receita preferida da viagem: bife de Chorizo, pão, cebola caramelizada no vinho branco e um tempero liquido Americano que o Tana comprou sei lá aonde. Não poderia ser melhor, queria estar comendo isso nesse exato momento!

No outro dia fomos logo recebidos pelo filho do proprietário do camping, que se aproximou amigavelmente para comunicar que o camping Amigos de La Naturaleza ficava aberto o ano todo. Não cometemos crime! Após uma boa conversa pagamos nossa dívida e partimos em direção à cidade para almoçar e seguir rumo a uma outra área de camping que havíamos mapeado. Uma área isolada e livre de taxas. Bem, não deu certo, mas acabamos em um belo lugar, que nos proporcionou banho de lago ao pôr do sol, muita lenha seca e mais uma noite memorável.

Tomo outro banho na água congelante do lago pela manhã e, renovado, seguimos para Villa La Angostura. A falta de campings abertos e refúgios livres para acampar me faz pensar em quão difícil é se sentir desconectado da engrenagem turística que algumas regiões se tornaram. Logo entendo que todo controle é necessário. Não sabemos aproveitar nada com responsabilidade, no longo prazo sempre acabamos afetando drasticamente tudo o que tocamos: o lixo deixado em algumas áreas públicas de camping é a prova; mesmo na Patagônia pessoas conseguem deixar rastros de maneira inadmissível. O deserto me vem à mente…só a hostilidade total de certos climas, relevos e paisagens afastam minimamente essa ação destrutiva da nossa presença, pois poucos conseguem de fato driblar toda a força da natureza que manda embora qualquer ser não preparado.

Reflexões à parte, nossa última noite na Patagônia foi em um dos poucos campings livres da região. Outro lago nos agraciava e o fim de tarde logo afastou todos os turistas para suas cabanas e pousadas. Com tom de despedida, foi uma noite sem muitas conversas, mas muita contemplação. Dormimos. O frio por momentos nos lembrava que estávamos onde estávamos.
De manhã um café forte - para cortar a baixa temperatura- comida e o inicio oficial da nossa volta para casa.

Nota #10

A decisão foi essa: voltar os 4 mil km de Villa La Angostura até Balneário Camboriú no menor tempo possível. Revezaríamos a direção durante o dia e também noite adentro, para com margem de segurança, dormindo em turnos, tocarmos o máximo possível sem parar.

O inicio foi bem dramático. Fomos salvos pela Policia Argentina ao cometermos o erro básico de ficar quase sem combustível em uma região inabitada, onde o próximo posto ficava a 80km e o anterior a mais de 100km. Com autonomia de 20km pra rodar, e um pouco de sorte, chegamos a um posto policial. Lá conseguimos comprar, dos gentis oficiais, 40 litros de Diesel que usavam para alimentar o gerador do posto improvisado.

Assumi a direção logo depois do susto e seguimos viagem. Em uma reta sem fim, longe, vejo pessoas fazendo sinal… algo ruim havia acontecido e isso era claro, mesmo distante. Conforme nos aproximávamos notamos um carro capotado fora da estrada. Mais perto ainda vimos 3 crianças bem machucadas e em estado de choque e, embaixo do carro, uma senhora presa, metade para dentro e metade para fora. Instantaneamente começo a suar e a sentir uma injeção de pânico e adrenalina. Com certeza haviam capotado minutos antes, fomos o terceiro carro a parar, não sabíamos se descíamos ou se seguíamos em frente - descemos.

Gente gritando, crianças chorando, pânico e indecisão a respeito do que fazer. Aparentemente as 3 crianças e o senhor, que conseguiram sair - ou foram arremessados para fora - estavam bem, apenas ferimentos leves. A situação da senhora presa preocupava. Tentei não olhar muito, nesse momento já existiam umas 30 pessoas no local. Foi decidido levantar o carro capotado com as próprias mãos e retirar a mulher antes que fosse tarde, agarramos o carro e começamos a levantá-lo. Éramos uns 15 homens e com muito esforço a retirada foi bem sucedida. Logo após, decidimos deixar o local. Havia muita gente e pouco a fazer, apenas esperar a ambulância que demoraria menos de 15 minutos para chegar.

Entramos no carro abalados. Tenho certeza que mentalmente cada um de nós pôs em cheque nossa corrida maluca para chegar em casa. Tenho certeza também que isso nos fez redobrar o cuidado para não cruzar a linha da imprudência/irresponsabilidade nessa maratona.

Dirigimos quase sem parar pelos próximos 1.700 km, até atingir Buenos Aires e cometer um dos erros mais toscos da Expedição.
Talvez tenha sido minha a sugestão de cruzar a Balsa de Puerto Madero que liga Buenos Aires ao Uruguai, pois isso nos pouparia cerca de 500km, tempo e talvez até algum dinheiro (que ingenuidade)!
Atravessar Buenos Aires pelo centro às 8h da manhã depois de uma noite virada na estrada foi um pouco caótico, mas nada muito complexo. Gosto de dirigir em cidades e fui eu quem tocou “La Defensora” até a maldita balsa.
Estávamos varados de fome, sujos como poucas vezes na viagem toda, exaustos e querendo chegar ao Uruguai logo.

A Balsa para Colonia del Sacramento partia às 12:30h. Chegamos no luxuoso terminal às 12:10h e uma correria insana começa para aprovar a documentação de uma caminhonete com uma moto em cima, imigração para 3 pessoas, pagamentos, etc, etc.
Em um piscar de olhos estávamos no guichê de pagamento, dividindo a quantia incerta em 2 cartões, sem saber a cotação da moeda argentina, pois estávamos no Chile e trocamos pesos chilenos por argentinos. Tudo era extremamente nublado em nossas mentes nesse fragmento de tempo.

- Cuanto es sênior?
- 6.000 mil pesos.
- 100.000 pesos?????????

- No. 6.000!
- 100.000 galera? Vamos? Não pode ser, fudeo!

- Senior, 6.000 ou 100.000??????
- 6.000!!!
- Quanto é isso será?
- Vamos nessa?
- Vamos, mas quanto é?

- Pode dividir em 2 cartões?
- Vamos?

- Vamos!

- Foi

- Quanto deu essa merda? Fudeu galera, fudeu!

Entramos na balsa para uma travessia de 45 minutos. Parecia mais um freeshop de aeroporto misturado com navio/trem turístico. Logo percebemos o erro que cometemos. Balsa lotada, não havia wi-fi. Sentamos no chão e a vontade era de chorar, espancar qualquer funcionário daquele serviço escroto, xingar e quebrar coisas! Me dirigi à casa de cambio à bordo, para descobrir que a cotação era de 3.5 pesos argentinos para 1 real, ou seja, a travessia na melhor das hipóteses nos custaria cerca de R$ 1.500. ISSO MESMO: 1.500 REAIS!

Fomos consumidos por um sentimento de burrice extrema: Como aquilo tinha acontecido? Como fomos tão amadores? Como, como?? Por um momento grande parte da alegria que nos habitava por voltar pra casa foi tomada de nós. Sinceramente fomos roubados naquele momento, um serviço de merda desses não pode custar 1.500 reais. Gracias Hermanos!


Do mesmo modo que isso tomou posse da nossa mente, meia hora depois, como uma luz, começamos a bolar 1.000 planos para reaver o dinheiro e, aos poucos, tudo foi voltando para o lugar. Adentramos no Uruguai um pouco mais leves, já mais próximos de casa, mas já estávamos a 30h horas sem dormir, sem comer direito e sujos. Precisávamos resolver essas questões, era impossível seguir. Paramos em alguns postos para encontrar uma ducha, sem sucesso. Foi quando uma senhora, visivelmente lendo nosso cansaço, pegou o telefone e ligou para alguém. Mal sabia que além do banho, ela também tornaria possível a última experiência marcante e positiva da expedição.

Seguimos para o Bar do Guido. Quando entramos foi amor à primeira vista: Um bar muito antigo e com muitas memórias pelas paredes. O atendimento extremamente simpático, comida maravilhosa, cerveja gelada, e um banho merecido - até dormimos sentados na fachada que beirava a rodovia. Conseguimos nos recompor de tudo que havia acontecido. Conversamos por um bom tempo com os donos do bar e, para fechar com chave de ouro, Danilo descolou 4 baseados com Franco - funcionário mais novo do bar. Tomamos uma cerveja e rimos de tudo que passamos, não só nas últimas horas, como na viagem toda, filosofia de bar forte!

Agora, com cerca de 1.300km restantes para chegar em casa, seguimos em um pôr do sol até que o sono nos alcançou. Dormimos (desmaiamos) amontoados dentro da Defender por cerca de 10hs, nos fundos de um posto. Acordamos com o Tana ligando a Defender e partindo: Mais um dia longo de estrada pela frente, alguns caminhos errados e uma entrada no Brasil por Jaguarão - uma fronteira aberta. Quando vimos estávamos no Brasil, sem sequer apresentar documentos pessoais ou dos veículos, fato curioso, afinal, havia uma moto em cima do carro.

Tocamos madrugada adentro (uma pausa de 3hrs para dormir) e amanhecemos sentindo o cheiro do mar. Chegamos em Balneário por volta das 9:30h da manhã, com a tarefa de remover “La Tenebrosa” de cima de “La Defensora”.
Fomos a um ferro velho e logo ela estava transferida para a caçamba do meu mecânico, onde ficará por algum tempo até voltar à vida.


A despedida é rápida, fico na porta de casa vendo Danilo e Tana seguirem viagem até Jaraguá do Sul, vendo encerrar uma das coisas mais insanas, especiais e difíceis em que já me meti. Ainda não sei exatamente qual o efeito que ela teve sobre mim. A tarefa de escrever em tempo quase real o que acontecia em minha volta e registrar tudo isso fotograficamente foi um desafio. Me mantive focado, rígido e disciplinado nesse quesito. Fazer 7.500 mil dos 11.000 quilômetros com uma moto 1993, em certos momentos caindo os pedaços também vai me marcar… não sei se faria novamente. Ter calma, ouvir e entender as pessoas que cruzavam o meu caminho talvez seja o que de mais especial uma viagem dessas proporciona.
Cruzamos climas e regiões totalmente distintos entre si, realidades tão diferentes que assustam e nos deixam à margem da vida cotidiana que passa ora surpresa, ora indiferente pela nossa presença.

“Esse não é um relato de façanhas impressionantes.
É uma parte de duas vidas registradas num momento que cursaram juntas um determinado trecho com identidades de aspirações e conjunções de sonhos.
Nossa visão foi muito estreita? Muito Parcial? Muito precipitada?
Nossas conclusões foram rígidas demais? Talvez.
Mas esse vagar sem rumo por uma América maiúscula me mudou mais do que eu pensei.
Eu já não sou eu.
Pelo menos já não sou mais o mesmo em meu interior”

(Diários de Motocicleta – Walter Salles)