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Há algum tempo temos acompanhado o planejamento do nosso amigo e agora colaborador Marcos Ribas rumo à sua expedição pela Latino América a bordo de “La Tenebrosa”, uma Teneré 600, 1993.

A expedição ganhou nome e companhia. No Rio Grande do Sul a tripulação aumentou, congregando outros fiéis amigos (Murilo Silva, Danilo Xavier, Tanael Zapella e Fagner Hernatski) que passaram a acompanhá-lo sobre quatro rodas. Um carro, uma moto, amigos e uma aventura que inspira qualquer um tenha correndo nas veias a paixão por aventura. O diário de bordo dessa viagem você acompanha por aqui, enquanto ela ainda acontece. 

Então fecha a boca pra não comer poeira e aproveite o passeio que é de graça!


 

Nota #1

08/10/16

Posso começar escrevendo que o dia de hoje me parece um epílogo de algo maior, uma cápsula que condensa o que vem pela frente. Ao mesmo tempo que algumas coisas se encaixam e começam a fazer sentido, outras revelam e trazem à tona preocupações que me enchem de dúvida.

Dos amigos que sempre vislumbrei ao meu lado em uma viagem como essa, nenhum estará. Percebi que é quase impossível realizar algo assim exatamente como planejado, cada um com sua vida, cada vida em seu momento e cada momento uma prioridade diferente, é simples. Percebi também que isso não importa muito.

Dos amigos que tenho ao meu lado para essa aventura, honestamente, já não imagino sendo outros, e nem começou ainda (pra eles).


 

 


 

Acordei cedo, de uma semana extra corpórea, a cabeça até então não sabia aonde estava... nem muito próxima, nem na estrada; era um limbo estranho.

Café da manhã não consegui tomar, logo aqueci o motor da moto e saí.

10 minutos depois a primeira parada, meia hora depois a segunda, perdi a conta. Bagagem soltando, GPS sem cabo de bateria, fome, mala lateral aberta, caindo pedaço da moto, aperta parafuso, barulho estranho, frio, muito frio, frio demais, dor na bunda, se esticar, sol na cara, pega o óculos, guarda o óculos, merda, não consigo fazer nada em movimento, preciso melhorar isso.

Chega a ser engraçado, mas aquela velha história de “cair na estrada, conhecer pessoas, viver a vida e entender que com calma tudo se resolve”, ela simplesmente se materializou na minha frente, logo nessa primeira perna de 500km - a única que decidi fazer sozinho.

300km longe de casa meu cabo de embreagem decidiu estourar, EXATAMENTE na frente da PRF. Logo encostei a moto, saíram 3 policiais já nitidamente apreciando uma moto de 20 e tantos anos de idade, totalmente carregada e no “auge” da forma. Me cumprimentaram e logo confirmei o problema, cabo estourado e ponto. Tenho um reserva, vamos resolver essa. Eles me empurraram em ponto morto, bati uma segunda e toquei 20km sem embreagem até o posto mais próximo. Lá conseguiria ajuda fácil, segundo eles.

E consegui, deixei a moto no posto, peguei uma carona até o mecânico mais próximo, que estava fechado mas morava ao lado, abriu a porta e logo vi que esse cara não só ia me salvar naquele momento, como era muito sangue bom! Grande Baixinho, membro dos Mutantes Moto Clube, dono de uma Intruder 250cc com vasta experiência!


 


 

Voltamos ao posto, conversamos bastante enquanto ele substituía o cabo, já me passando macetes para eventuais necessidades.  

Baixinho:

- Pô cara, viajona essa sua, 10.000km!

- Deve render muita foto, tem que registrar tudo! Ainda vou fazer uma dessas, tem que ter aquele negócio de carta verde né?!

- Tem que tirar foto até de quando a moto quebra também.

Estranhamente, esse foi o gatilho que eu precisava pra entender algumas coisas que estavam nubladas. É sobre as pessoas, os lugares também, mas as pessoas que são demais. Abri uma das malas, cheia de tralhas, saquei a câmera e fiz 5 fotos da situação, 3 boas. Agora ela vai ficar sempre à mão - não muito fácil em cima de uma moto totalmente carregada, mas vai ficar.

Agora espero mais um veículo épico chegar na casa da minha vó, com 4 figuras dentro, pra juntos cruzarmos a primeira fronteira da expedição. Daí pra frente é tudo isso, de maneira exponencial.

Queria ter uma foto daqueles policiais!

 


 

Nota #2

10/10/16

 


 


 

A oscilação entre otimismo e pessimismo é de hora em hora. A espera pelos companheiros de viagem, mesmo ao lado dos meus avós, que vejo 2 vezes ao ano, se torna cada vez mais agonizante.

Treinar a calma e a resolução de problemas é o jeito; soldamos pela manhã o que precisava ser soldado na moto para não deixar metade pela estrada, e outros ajustes serão feitos por um mecânico - que de quebra conseguiu outro cabo de embreagem para reserva, vai que…

Perdi alguns momentos hoje... algumas fotos, algumas pessoas, câmera longe, cabeça longe, essa coisa de as vezes ignorar o presente, o momento. Já identifiquei em mim faz algum tempo, e tempo é o que leva para mudar isso, esforço também. O ímpeto pelo registro requer disciplina constante, é algo que deve estar intrínseco em você, tornando a câmera uma extensão e um objeto banal, sem veneração, bla bla bla, e a mais pura verdade. Que o digital me ajude nessa. Tenho fotografado mais.


 

11/10/16

O dia foi longo, e o que vou contar agora não é mero artificio para tornar nada mais emocionante: como num estalo, um sussurro no ouvido, eu percebo que o documento da minha moto fico em casa. Sim, na Praia Brava de Itajaí. Sim, que amador, essa pode ir pra minha conta!

Me dei conta por volta das 14h, agora, 23:07, ele esta cruzando SC em um ônibus da Reunidas e será retirado por mim amanhã as 7:30 da manhã em Passo Fundo, nossa primeira cidade após a saída da casa dos meus avós, nenhum plano alterado (chamo isso de sorte).

O resto da turma chegou por volta das 19h, e uma recepção calorosa por uma família italiana foi o que aconteceu; banquete e boas conversas, despedidas, votos de boa sorte e orações somam todos os outros sentimentos que compõem essa última noite antes da estrada aberta.

Nota #3

12/10/16

Acho que vou começar esse relato dizendo que vou lembrar de hoje pra sempre como o dia em que fui “atingido” por um raio. O que aconteceu de verdade nem eu sei, na verdade nem eu acredito, então não conto mesmo com sua crença.

A saída de Lagoa Vermelha foi às 7:30. Parada em Passo Fundo 8:30. Documento na mão, vamos embora!

Chuva, eu digo CHUVA, desde às 9h até nossa parada para o almoço ao meio dia, um tortei frio, que não faz jus ao prato que tanto amo, especialidade de minha avó.

Uma trégua na chuva nos agraciou até a chegada em São Borja, divisa com a Argentina, onde retornou com vontade. Desse momento pra frente algo aconteceu: toda a força da natureza existente nas histórias contadas de idas e vindas ao Ushuaia, Patagônia Argentina, nos atingiu no norte, no Pampa Dos Infernos, região próxima a Corrientes. Viramos à direita em um trevo e rumanos adentro de uma das nuvens mais pesadas que eu já vi, cravejada por raios que riscavam e clareavam o fim do dia. A noite veio. Rajadas me forçavam pra fora da pista, as gotas de chuva pareciam pedras, até que então viraram pedra e fui obrigado a encostar em um acostamento de terra, quase caindo pela primeira vez, já noite.


 


 

Entrei no carro pra me recompor e logo decidimos seguir. Voltei para a moto e tudo só piorava, os raios pareciam atingir lugares próximos demais, até que um chegou realmente próximo e uma corrente passou pelo meu corpo, causando uma sensação de pânico que poucas vezes senti... a moto estremeceu também, mas ela se comportou como nunca nesse momento, e eu realmente senti que havia uma conexão de um segurando o outro. Travessias alagadas e rajadas que me faziam andar a 30km/h de lado em linha reta.

Eu esperava a qualquer momento pelo pior. Nunca senti nada igual e espero não sentir novamente. Chegamos. Estamos sob um teto, em um sobrado só pra nós, um baseado aceso, comida sendo feita, música rolando. A vida é boa, quando se sobrevive.

 


 

Nota #4

13/10/16 - 14/10/16

Cada dia é mais difícil escrever, estamos mais longe e a estrada é exigente - nada é como se espera. Rodamos cerca de 1.500km até agora. O primeiro acampamento saiu e não poderia ter sido melhor: Ojo de Bife na Parilla, cerveja de litro e tempo firme. Que noite!


 


 

Neste momento o tempo marcado é 21hrs, escrevo de um posto de beira de estrada, onde estamos acampados essa noite, depois de uma belíssima partida de futebol ao pôr do sol com os ilustres Franco e Brian, residentes do Pampa de Los Infernos, região do Chaco. Preciso muito de um banho. Amanhã o destino é Salta, quase 700km.


 

 


 


 

La Tenebrosa segue firme, cada vez mais solta, cheia de fita e de barulhos curiosos. É engraçado que apesar de confiar nela, admito que não faço ideia se conseguirei cumprir os 10.000km. Sei que não vai ser fácil. Talvez tenha subestimado uma viagem como essa, mas como ela, sigo firme.


 


 

 

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Nota #5

16/10/2016

Em frente mais um dia, rumo a Salta, pé da cordilheira. Longas retas se estendem novamente no Pampa de Los Infiernos. 40 graus e a moto travada em 120 km/h o dia inteiro. Quando a paisagem começa a mudar e num horizonte extremamente distante conseguimos vislumbrar uma silhueta montanhosa, o humor automaticamente muda, e essa mudança repentina de humor seria a tônica dos próximos dias.


 


 

A chegada em Salta foi tranquila e logo nos abancamos no camping municipal, um misto de grande clube e escola transformado em camping. Um belo banho nos esperava (o melhor até agora), um cano saindo da parede, despejando em nós grande quantidade de água com temperatura totalmente ajustável - que surpresa!


 


 

Logo decidimos pegar um Remy (algo como um táxi) rumo ao centro da cidade, mais precisamente a rua Balcarse, onde após uma indecisão generalizada sentamos em um restaurante que aceitava Dólar. Pudemos desfrutar de uma Parrila Especial para 4, empanadas e, claro, cerveza! Pra nossa surpresa um grupo musical andino começa sua performance: 3 senhores simpáticos tocando clássicos da região. Foi inevitável a compra do álbum para ouvir cruzando a cordilheira no dia seguinte, e que dia seguinte!


 


 

17/10/2016

Acordamos cedo, mas a saída demora um pouco como de costume, no passa nada! Nos abastecemos de frutas, comidas diversas e folha de coca para a travessia da Cordilheira dos Andes. Nossa decisão de atravessá-la por uma rota alternativa foi mantida e seguimos por uma estrada de asfalto que logo se transformou em terra e problemas!


 


 

La Tenebrosa começou a se soltar inteira. Foram necessários muita fita e cordas, mas a situação só piorava, junto com a condição da estrada. Por boa parte do trajeto inicial me questionava, afinal de contas a ideia da rota de terra foi minha. O ritmo era muito lento e a paisagem, apesar de linda, um pouco diferente do que imaginava. Para piorar, a moto exigia concentração extrema - uma pena por certos momentos. Enquanto isso muitos caminhões do exército passavam no sentido contrário. Sem entender nada, só acenamos para os monstros a Diesel que levantam muita poeira no Ripio.


 


 

A coisa realmente ficou tensa quando parte da carenagem dianteira que segura o farol cede totalmente e se apoia no meu paralama dianteiro, travando grande parte do jogo do meu guidão. Me acompanhem: agora temos uma moto carburada com o guidão travado, numa estrada de chão,  rumo a altitudes que beiram os 5.000m. Isso reflete diretamente na nossa quilometragem, conseguimos fazer apenas 150km dos 400km programados. Por muita sorte, quando quase não conseguia mais seguir, uma curva revelou uma pequena cidade chamada San Antonio de Los Cobres.


 


 

O fato de termos que acampar por ali mesmo logo foi assimilado por todos. Era tarde e não tinha como prosseguir. A próxima cidade estava a 150km. Comecei a caçada por algum mecânico que tivesse uma máquina de solda. Nesse meio tempo, alguém teve a ideia de pedir ajuda e abrigo na base do exército. Fomos até lá, recebidos de modo muito cordial e educado. Descobrimos que havia um mecânico no quartel e que nos ajudaria com grande prazer. Em alguns minutos, muitos soldados se reuniram em volta da moto e da Defender. Fomos surpreendidos por um astral amigável e ficamos por ali quase 2 horas, conversando sobre tudo com os amigos militares. Enquanto isso, a moto era soldada e tudo estava resolvido. Por hora.


 


 


 

A base não podia abrigar civis. Entendemos que regras são regras, sobretudo no Exército. Nos deram permissão para montar nossa própria base nos fundos da igreja, localizada na praça central do vilarejo. Nos alertaram que na noite anterior a temperatura na madrugada chegou a -20C, mas estávamos prontos para enfrentar o primeiro grande frio. Montamos tudo: lonas, fogo e a estrutura completa. Vestimos todas as roupas possíveis, abrimos 2 garrafas de vinho, fizemos batatas assadas e a noite foi tranquila, sem pé gelado. Memorável!

Acordamos cedo e continuamos nossa travessia andina. Decidimos seguir pela rota de terra... um misto de erro e acerto. Conforme avançávamos, a paisagem se tornava mais deslumbrante e mais hostil, inóspita, com muito vento, frio, clima seco e altitude. A moto logo quebrou no mesmo lugar, e foi a gota d'água. Arrancamos toda a carenagem, com farol e tudo. Uma cirurgia em meio ao nada. Isso refletiu em alívio imediato. Sentei nela e toquei como nunca na estrada de chão, alguns momentos batendo os 100km/h em retas convidativas.

Enfim chegamos à fronteira do Chile. Ainda faltavam 160km e a luz baixava rápido. Com os trâmites legais resolvidos, decidimos seguir a San Pedro do Atacama, mesmo sabendo que logo anoiteceria e que a moto estava sem luz. Com a noite, veio um frio insuportável que tomou conta do meu corpo. Dos 160km, consegui andar apenas 60km, até praticamente congelar minhas mãos. Fui obrigado a entregar a moto para o Danilo, que bravamente me salvou e tocou até nosso destino em meio a um breu. A Defender seguia colada iluminando o caminho. Chegando na cidade fomos ainda parados numa blitz e revistados por policias e cães farejadores. Nada encontrado!

Salvos, nos abrigamos em um hostel para nos recompormos, avisarmos os familiares e descansarmos. Com feições sofridas, capotamos!


 

18/10/16

A preocupação em arrumar a moto me tirou o sono na primeira noite em San Pedro de Atacama. Através da indicação do dono do hostel, conversei com um mecânico e com um bom soldador, que logo resolveram o problema da falta de luz e trocaram o óleo.

Para a travessia alta da Cordilheira, tive que tirar o filtro de ar. Como nada é fácil, a moto tem falhado bastante. Espero que uma limpeza de carburador e a troca da vela resolvam o problema. O cansaço é grande e o deserto não perdoa. O próximo capítulo se chama Antofagasta, banhada pelo Pacífico. La Defensora e La Tenebrosa receberão alguns cuidados para a descida da costa chilena.

Suerte para nosotros!